Apólogo


no diálogo (possível)
com duas obras do pintor Mário Rita,
“Dia de Todos os Santos” e “Sibila”



Na mesma emergência de um Céu primaveril do entardecer, toldado de escuridão, pela negritude de um corpo de nuvens, assim se posicionam, na minha perspetiva, estes dois quadros, de Mário Rita, “Dia de Todos os Santos” e “Sibila”.

Recordo, nesse sentido, o diálogo havido entre mim e o pintor, quando me foram dadas a observar, num primeiríssimo momento, estas duas obras. A filtrar o meu olhar, na distância, o écran imóvel do computador não me permitiu senão suspeitar as raízes das formas e fazer lançar sobre o meu espírito uma grande dúvida de perplexidade e de interrogação face à envolvência da construção das pinturas. Não consigo perceber, digo eu, ainda que, de certa forma, deslumbrada pela representação densa, negra, escura, do cavalo, Porque escolheste um cavalo?, Mário encolhe os ombros, Porque não? Na densidade da figuração das formas todas elas se equivalem. Pensa, por exemplo, diz-me ele, numa longa, imensa, e insidiosa estrada. Não, pensa, imagina, antes, um Caminho. Nesse Caminho, mesmo no meio, no coração da direção, tens um cavalo deitado. Não se move. Está inerte, como que adormecido. Não, também não é adormecido, está antes em repouso. Um repouso tranquilo. Posso pensar numa encosta verde, onde se abre um Caminho, digo eu, tentando acompanhar o seu raciocínio. Sim, perfeitamente, diz-me ele. Parece-me até mais exato. Uma encosta verde e uma estrada. Não, uma estrada não, não utilizemos a palavra estrada, porque tem em si mesma já, de certa forma, uma marca marcadamente civilizacional e moderna. Deixemo-nos configurar no nosso raciocínio mesmo e apenas a um Caminho. Um Caminho desbravado pelo homem, mas no qual a presença da Natureza se sente como algo primordial, Algo inatingível, arrisco eu. Pois, sim, talvez, diz-me o Mário. Sim. Talvez inatingível. De certa forma esse Caminho que serpenteia pela encosta evoca o primeiro de todos os primeiros Caminhos, ou melhor, ele é o Caminho, pois só ele traça o sentido da Vida. Então, nesse Caminho, o cavalo está imóvel e deitado exatamente no meio, centro perfeito da colina. Por isso o manto erguido por cima dele, acrescento eu, querendo acompanhar o pensamento. Sim. Pode ser isso. O manto erguido por cima do cavalo sinaliza o ponto exato no Caminho, no qual o cavalo repousa, para prosseguir talvez, depois, numa trajetória infinita. Então, interrogo eu, não é um ponto de chegada? Claro que não. Não há um ponto de chegada neste quadro. O que há, lembras-te, que to disse logo no início, é um Caminho. O cavalo está apenas num ponto exato dessa mesma direção. Daí estar deitado em quietude. Cumpriu apenas uma etapa. Mas não chegou, Talvez que não haja um ponto de chegada, arrisco eu e acrescento interrogando, mas porque repousa? Talvez, apenas talvez, que, na noite anterior, o Céu se tenha incandescido com o reverbero de uma tempestade e que, nessa densidade de penumbra e luz, o cavalo tenha lutado na sua fogosidade indomável contra todos os perigos do universo. Talvez, nessa noite densa, no cúmulo da escuridão, rasgada pelo fogo do Céu, o cavalo tenha sido consumido internamente no seu fogo íntimo e agora tenha tão só de repousar. Julgo que sim, digo eu assinalando que concordo com toda a explicação. Parece-me lógico. Mas regressemos ao Caminho, diz-me o Mário, o ponto fulcral, não te esqueças, é a direção que o cavalo segue. Tomemos, de novo, a tua imagem, que me parece bem, da colina. O que vês?, se olhares em frente e para o Longe? Vejo, penso eu, a linha do Horizonte. Exato!, é exatamente esse o ponto concreto. Vês a linha do horizonte, apenas, e podes imaginar que do outro lado da colina há uma outra encosta em tudo idêntica àquela que observas a partir do teu ângulo fixo e imutável de visão… E na outra encosta, interrompo eu, acrescentando, o Caminho prossegue, prossegue a estrada e prossegue a direção, e até podemos conceber que num outro ponto equivalente de um centro imaginário encontramos de novo um outro, ou o mesmo, cavalo deitado, em repouso, como que inerte ou adormecido… Sim, percebeste, é isso mesmo, diz-me o Mário. E, acrescenta, o manto erguido assinala apenas o ponto particular do traçado do Caminho de cada ser, em que depois de uma noite de tempestade, de trevas e luz, é necessário ter chegado a um culminar de qualquer coisa, e esse culminar tem sempre de uma feição absoluta a forma de uma quietude. Assim é.

Vou agora mostrar-te a “Sibila”. Olho à espera de reconhecer uma figura anciã e não contenho um grito de admiração, Mas é uma Pietá!, Exato, diz-me o Mário.

Mas não é uma Pietá. Já em casa, observo em grandes ampliações, recurso técnico que me permite o computador, a imagem da segunda obra. Ou pelo menos, aquela que eu observei em segundo lugar. E verifico que não é uma Pietá. É outra coisa que aproveita apenas o esquema conceptual de uma longuíssima tradição de escultura e de pintura em torno de um arquétipo. O arquétipo de uma mãe com um filho morto nos braços. Mas não é exatamente disso que se trata nesta segunda pintura de Mário Rita. De resto, e bem, o nome do quadro é “Sibila”. E a dúvida que fica é qual das duas figuras, a que toma nos braços a criança ou a própria criança, representa a sibila, qual das figuras, ou ambas?, profetiza?. E porquê? Justamente porque, observando ao detalhe, não seja certa a dualidade e oposição de sexo dos dois seres. Ambas as figuras são andrógenas. Ou seja, há propositadamente uma indiferenciação sexual nos seres representados. No detalhe, observamos que a mater tem absolutamente escondido o rosto de mulher, podendo, portanto, não o ser, e que apenas a configuração da veste, que, de certa forma, é quase uma manto, lhe dá uma forma aproximadamente feminina. Também o pescoço da figura, quase quadrangular, e muito robusto, sublinha esta mesma indiferenciação sexual, que julgo propositada. Por outro lado, a criança que repousa no colo, tem traços femininos e não apenas masculinos, como seria antes de esperar, se seguindo o modelo tradicional da representação ancestral. Há, assim, uma espécie de equívoco entre uma forma masculina e uma forma feminina, representada também na criança, a blusa ou vestido, com pregas, o sapato de recorte mais feminino do que masculino. Creio que se pode afirmar que esta não-Pietá tem contudo uma marca de universalidade moderna de uma outra natureza e dimensão. Trata-se quase da figuração de uma nova humanidade e do redesenhar e reformular de um arquétipo à luz de um novo entendimento. E, então, nesse sentido, “Sibila” profetiza esta nova dimensão do homem novo, da humanidade nova, que dia a dia na dimensão da realidade quotidiana se constrói. E que em muito representa um campo de transcendência, no sentido de perda de antagonismo na dualidade feminino e masculino. Trata-se, assim, que o quadro representa um todo de projeção profética em torno de uma nova dimensão do Homem, de que as próprias figuras são o paradigma e o anúncio.


Em síntese, na mesma emergência de um Céu primaveril do entardecer, toldado de escuridão, pela negritude de um corpo de nuvens, assim se posicionam, na minha perspetiva, estes dois quadros, de Mário Rita, “Dia de Todos os Santos” e “Sibila”.

abril de 2017


M.A.



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