O Múltiplo e o Fragmentado num quadro do pintor Mário Rita
(ensaio)
“Uma sombra resiste/ Ao seu abraço.
A sombra que
de mim se alarga ao mundo inteiro,
E é como um
cansaço/ Total e derradeiro…”
( “Prostração”, de Miguel Torga, Diário, vols. IX a XVI)
Muito marcado por um
distanciamento do olhar no devir
temporal, este quadro, do pintor Mário Rita, inscreve-se, necessariamente, num
momento de contemporaneidade concreto e real, sentido e vivido pelo artista.
Não podia um panegírico do século
XXI à Ordem de Malta deixar de atravessar um caminho de novecentos anos, da
origem da Ordem religiosa, no século XI, à sua reconfiguração a partir do
século XIX. E tanto que não podia, e que tal não seria legítimo, que cada um
dos elementos presentes nesta obra contém uma carga simbólica e representativa
dum diverso e múltiplo olhar do
artista transcorrendo estes nove séculos.
Talvez, justamente por isto, tudo
nesta pintura é fragmentário – nada é inteiro – , porque a inteireza, e a Alma desta pintura, reside, precisamente, nessa
fragmentação. O que, sendo paradoxal, é, contudo, significativamente um
propósito. Pois não se trata de um ser ou
não ser, mas, sim, de um ser e não
ser.
Esta simultaneidade paradoxal (ser e não ser) é, hoje, um dos mais
relevantes desafios intelectuais, que emerge quer do universo atualíssimo da
física quântica quer das ancestrais filosofias taoistas. E é este ser e não ser, num único, mesmo e só
momento, que podemos captar enquanto leitores
nesta obra artística.
Como necessário, o apelo sensorial
do quadro é forte, tornando-se, num certo sentido, quase enigmático, se
tomarmos como ponto de partida de leitura
o eixo central da pintura, onde está desenhado verticalizado um monobloco
retangular de cor negra escura. Será possível, legítima, e quase direta, a
associação a uma certa representação simbólica do retângulo matricial pátrio;
cujo princípio de fundação histórica, mas também de fundação mítica, remonta, aproximando-se
do período de fundação da Ordem de Malta, ao século XII. Mas o enigmatismo
deste monobloco negro escuro é acentuado pela sua humanização através de
braços/hastes laterais que de si mesmo saem, como se este todo representasse,
humanizado, um Poder dentro de um outro Poder.
Neste sentido, cria-se, e
constrói-se, uma relação direta entre a história da Ordem de Malta e a história
da nação portuguesa, não sendo possível esquecer que a obra, encomendada ao
pintor Mário Rita, pretende ser colocada numa Igreja do território português,
em Lisboa.
Mas como representar, na origem
desta Ordem religiosa, com carácter laudatório, a convicção de ser um Bem a
crença de matar em nome de uma Fé? Não
é possível. E nesse sentido, e corretamente, o artista recorre a uma
representação que é o ponto forte desta obra. Dois cavaleiros junto ao
monobloco retangular negro escuro. Um, desenhado de frente para nós,
erguendo-se hirto e firme; outro, desenhado numa posição lateral, ajoelhado;
tocam-se estas duas figuras num único ponto do quadro, que podemos considerar
ser o vértice simbólico do seu significado, na dualidade paradoxal do ser e não ser, quando o joelho fletido
em terra do cavaleiro lateral, em atitude de humildade e de serviço, toca o pé
do cavaleiro que permanece erguido. Também no mesmo sentido de leitura se pode
entender a contaminação dispersa, mas mais evidente na parte inferior do quadro,
de fios de tinta de cor vermelha que escorrem, ou mancham, quase todas as figuras representadas.
Ainda em termos sensoriais, a cor,
as cores, de fundo do quadro são ricas. A forte dominância do azul impõe-se (no
cimo do quadro, azul claro; na parte inferior e central do quadro, onde estão
implantadas as figuras, azul forte; no canto inferior esquerdo, onde estão
desenhadas as duas patas dianteiras de um cavalo, o azul é menos carregado e
menos forte; e um pouco de branco nos cantos superiores esquerdo e direito,
direito, onde se encontra a insígnia ou brasão). Mas, perante esta diversidade,
o leitor do quadro encontra-se quase perante um universo de texturas, ideia que
pode ser justificada pela representação, na parte lateral direita do quadro, de
um aparente fragmento de tecido de brocado que podemos associar à aristocracia,
e emblemático da própria origem aristocrática da Ordem.
E uma sombra resiste ao seu abraço, como afirma, num poema, Miguel
Torga. E é essa sombra, a sombra de um passado, que tão bem o pintor soube
expressar simbolicamente nesta sua obra. Na verdade, e concluindo, Mário Rita
inscreve na modernidade de um ser e não
ser toda a dimensão militar, religiosa e humanista da Ordem de Malta.
dezembro de 2016
M.A.
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