Um génesis em forma de Aurora
Digressões em torno
do processo de criação artística
a partir das etapas
de construção de um quadro
do pintor Mário Rita
“E disse Ele, em silêncio, só numa comunhão em Si: no momento do
vislumbre das formas, uniu Deus o pensar ao sentir.”
(autor desconhecido)
I
Num primeiro plano primitivo,
informe, o caos da ausência da forma encontra-se traduzido na imagem simples da
tela. Preponderância do espaço – preponderância absoluta de uma dimensão
física. E, neste caso, a sensibilidade do Autor leva-o a escolher uma colcha,
um certo bocado de tecido, frágil tessitura de um outro universo por umas
outras mãos. Será este mundo ténue, que sustentará toda a construção, e tão
frágil um quanto outra, obedecem contudo ao rigor lógico de uma intenção exata.
Mas o caos do vazio cede,
justamente, à necessidade de haver uma intenção. E essa primeira intenção, a
intenção inicial, é a da, na geometrização do espaço, encontrar o centro
perfeito – o ponto estável do equilíbrio – o ponto que absorve a entropia e que
se torna, por isso, eterno e imóvel. O ponto perfeito que centraliza a
retangularidade deste universo ainda não manifestado é também ele de uma
dimensão retangular, uma colagem central, uma mancha feita de papel branco. Mas
é este o ponto imutável. É este o ponto do silêncio e da força – o ponto fora
da mecânica do tempo.
II
Não basta ter encontrado o centro
seguro, o ponto perfeito do equilíbrio. E, por isso, na continuação do processo
da criação, e incipiente ainda, o Autor experimenta, na dinâmica do exercício
mental, o jogo entre volumetrias, como se se antecipasse, assim, a definição de
espaços de órbita de massas gigantescas que hão de eclodir, talvez em cor,
talvez em traços, talvez em formas num imediato futuro.
Vence a experiência da cor – o
branco, o vermelho, traços a carvão negro… E, por momentos, algo perfeitamente
aleatório, casuístico, emergindo, inconsciente, do sonho de um universo
interno, e sem sentido, parece dominar sobre o espaço. Mas é momentâneo. É algo
que o Autor controla, para regressar ao sentido de um propósito a partir de um
novo diálogo entre volumetrias. E, nesse novo diálogo, há um regresso ao ponto
central, o ponto de equilíbrio e de força, da obra. E, pensa, o Observador, que
assiste ao processo de construção, que o Autor tem necessidade de reorganizar
uma linha de coerência interna e que o sopro de vida da criação deste universo
não é um ato contínuo; é mais uma respiração, uma cadência, na qual há, por
vezes, um momento de repouso, uma contenção, anterior a nova insuflagem de
sentido, que refunde e reconfigura as energias no espaço.
III
E, subitamente, e como que
inesperada, surdindo como lembrança dum fragmento atómico de um tempo de
descontinuidade do tempo do pensar, fragmento infra infinitesimal, do
pensamento do Autor, uma forma arquetípica surge, entretanto, dominando a cena da
matéria. É ela um modelo da forma de um Ser.
Mas este modelo, esta forma
figurativa, é ainda informe e incaracterística. Do universo matricial da Ideia,
ela não é ainda senão um esboço de uma identidade não definida. Será ela ainda
uma indefinição de Ser. Um antes que é metáfora, mas que pré-anuncia um esboço
de Consciência, de sentido e de propósito na criação. Momento crucial de
síntese. Movimento profundo e significativo no redimensionamento das formas,
das cores, da linha narrativa deste universo.
IV
A partir de agora, o gizar do
plano de construção da obra está absolutamente definido na mente do Autor. E, da
linha de raciocínio abstrata, o concreto eclode, como se cada símbolo se
materializasse em imagens objetivas. Um princípio, um meio e um fim, um plano
narrativo exato, resultado de um momento paradoxal de síntese, que antes fora
operacionalizado por formas geométricas, volumes, traços, cores, e pelo
movimento, em dispersão, e ajustamento, das formas no espaço como se fossem
unidades cósmicas.
Por isso, o desenho do pálio,
coisificação figurativa do sentido da narração, apresenta-se como a expressão
do fluir lógico de uma abstração mental, imbuída de uma intenção, de um
propósito, que agora, claramente, se manifesta. E o Observador, aquele que lê
na tela o processo de construção, experimenta um primeiro raciocínio na esfera
do concreto também, daquilo que define a raiz da história da modernidade da
civilização humana.
V
Mas, e o ponto central?, o centro
do equilíbrio perfeito e de força?, o ponto imutável de um eterno instante presente?,
interroga-se o Observador. Então, como num culminar absolutamente natural e
simples do ato criativo, nasce o Ser antes só sonhado – é uma Ave, são duas
aves.
E a Aurora presentifica-se,
materializada na forma de uma Consciência viva. O que primeiro fora um ponto
central, uma colagem retangular, uma mancha de tinta branca, é, agora, o ponto
congregador do eclodir da forma nova. Num traço firme, contínuo, seguro, sem hesitação,
nem esboço, a graciosa Ave transmite desde logo, ao Observador, a elegância da
primeira emoção de um Ser que num primeiro instante acorda para a existência.
A sequência final das etapas de
trabalho, aos olhos do Observador, já nada adiantam quanto ao verdadeiro
interesse da procura do seu olhar. O trabalho de criação, no seu sentido
matricial e único, ficou concluído na síntese expressa pela forma da Ave. O que
se consuma e realiza, a partir daqui, são apenas gestos ou traços de
aperfeiçoamento de cores, de formas, uma certa dispersão de manchas de tinta.
Uma agilização e ajustamento de traços que são pormenores. O ato de criação, em
si mesmo, foi já completado; o que se acrescenta, por fim, são pequenas linhas,
nuances, de uma subjetividade
expressiva.
A Arte fora afinal, e apenas, a
descoberta de uma ordem, aquela que haveria de povoar um vazio, aquela que
haveria de dar um sentido ao imenso caos. E este fora o momento sublime de
arrebatamento – o mergulho, quase raro, quase irrepetível, no processo do
diálogo interior do Ser.
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Pensa, agora, o Observador, fora
da esfera do olhar sobre a construção da obra, do olhar sobre o ato da criação artística,
que lhe foi permitida ver uma cosmogénese. Na ação de um infinitamente pequeno
e de um infinitamente insignificante, encontrou uma singularidade, uma igual e
mesma singularidade que aquela mesma que deu a forma ao Mundo e que, do fundo
de um alicerce de um raciocínio lúcido e de uma intenção, tão igualmente exprime,
numa misteriosa escala humana, infinitamente imperfeita, uma Aurora, sempre uma
Aurora, a única Aurora, a nossa Aurora em que intraduzivelmente não somos senão
um fragmento e uma forma idênticos.
fevereiro de 2017
M.A.
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