Como a Alegoria do Tempo… Um apontamento e quatro ensaios a partir de obras do pintor Mário Rita
As quatro peças do mosaico
(apontamento)
«Num atalho de
montanha/sorrindo/
uma violeta.»
(Matsu Bashô)
Congregando
para uma unidade simbólica, Mário Rita desafia o espectador a mergulhar na
nebulosa densidade do Tempo. E, nestas quatro pinturas, um a um, como um pedaço
do próprio Ser, que se fragmenta, o espectador assiste ao eterno do movimento
da Vida – o curso que se move, como rio, de fluidas águas correndo, e
retornando outras e iguais.
O eterno
Crepúsculo, a eterna Noite, a eterna Aurora, o eterno Dia surgem, um a um, como
expressão viva de uma Alma de pintor que exibe, nesse vislumbre singular, o
concreto do universo e do mundo e do homem. Rota circular, infinita, do
anoitecer ao claro dia, ou da manhã que nasce à noite escura, Mário Rita como
que propõe que olhemos, e demoremos o olhar, como quem olha e vê, em cada um
destes seus quadros qual peça solta de um único painel – Mosaico da existência.
Necessário é,
então, que mergulhemos, densamente, subtilmente, naquela que será a condição
que atravessa toda a existência – tudo aquilo que É e toda e qualquer forma de
Ser - , simbolicamente representada, em cada uma destas peças, por três únicos,
e sempre repetidos, motivos figurativos. Motivos figurativos inesperados, na
sua dinâmica de diálogo, e
desafiadores de linhas de pensamento ou de perspetivas de entendimento.
E, como num atalho de montanha, sorriem para nós
um pálio, uma ave, uma árvore. E é, densamente, subtilmente, que, a partir
deste ponto, e nesta perspetiva de um sorriso,
que também é o sorriso do próprio
artista, que se desenham os quatro ensaios seguintes.
A parábola do simples caminhar
Crepúsculo
(ensaio)
«Este caminho!/sem ninguém
nele,/
escuridão de outono».
(Matsu Bashô)
Sob o pálio – que delimita o
espaço
do sagrado, numa desafiadora dimensão
humana -
é onde sucede toda a alquimia
lenta e dolorosa dos objetos
escolhidos pelo Pintor.
É aqui, neste centro da tela, que
o Ser, o próprio Universo e a Vida
atingem um clímax, resultante da
máxima concentração de cor, portanto, também,
da máxima concentração de
energia.
É este um momento redentor do
entardecer. Momento que também é de ausência
da claridade da Luz.
Mergulho indistinto em sombrias
águas arquetípicas – momento
de profunda metamorfose, em que
ave e árvore
se confundem no desenho dos
traços e da cor
como que adivinhando que, neste
mergulho tremendo no Tempo crepuscular,
outra ave e outra árvore se
anunciam.
Este é o momento em que todas as
forças do homem e do Universo,
tal como os três elementos que
enformam a pintura
têm de ser dominados
e transmutados a partir de uma, a
sua, natureza inferior,
até atingirem, numa outra
dimensão (visível nas duas últimas pinturas),
um patamar superior de Luz.
Trata-se de um vórtice de força
maior, concentrado num centro,
em que a árvore e ave se abrigam
num húmus de raiz necessária.
Esta é a ordem das coisas, do ser
e da vida.
E que é, enquanto flagrante de uma memória mental
do Pintor, não mais do que um vislumbre
de um universo de potencialidades
necessário.
A parábola do sonho do Ser
Noite
(ensaio)
«Agora é inverno/e no mundo
uma só cor/
o som do vento».
(Matsu Bashô)
Sob o pálio,
uma simples árvore,
numa verticalidade imperfeita,
vivifica na densidão da noite.
Momento larvar,
que antecede o eclodir de uma
outra forma,
alquimizada
através do processo criativo do
Pintor;
mas que, no sono e do sonho,
constrói
um novo enredo
de memória arquetípica
e que há de alvorecer,
numa manhã de um dia,
e que há de ser uma Aurora de Luz,
resultado de um movimento, de uma
concentração e de uma transmutação.
Será, então, na solidão mais
profunda
e no silêncio, necessário, mais
completo,
que a árvore se sacraliza numa
forma momentânea,
tão atómica
como o eclodir de um novo
universo
requer.
E, na mecânica do Mundo,
uma fragmentação milésima do
Tempo,
é apenas um instante –
tal como o artefacto da noite.
E é a noite que concentra toda a
opacidade
da árvore
e o Pintor encontra, deste modo,
no fragmento da escuridão
necessária,
o útero perfeito
para a gestação dos objetos.
A parábola da promessa de vida
Aurora
(ensaio)
«Vozes das aves./Nessas
horas, um poeta/
não tem mais mundo».
(Matsu Bashô)
Sob o pálio,
o Pintor presentifica, fixando
numa forma física, a natureza de
um momento.
Momento raro, porque esta Aurora,
que emerge,
Aurora inesperadamente latente,
não rasgou ainda por completo
a corrente noturna da opacidade,
linha elítica sob a qual se
sustenta o Mundo.
Da noite para o despontar do dia,
do inconsciente denso para
a luminosidade da Consciência.
E a mancha branca –
imaculadamente branca –
congrega em si mesma
a dimensão luminosa de uma
claridade que desponta,
alquimia quase completa
de uma forma material que irrompe da massa branca de uma luz.
É uma ave inicial.
É ela a Aurora de um estado
superior
de Consciência,
que conquistou um novo molde a
partir das formas imateriais
e intraduzíveis do sono e do
sonho.
Nestas horas do alvorecer,
confia-se apenas na quietude
da memória,
que é Consciência latente,
de uma ave que desponta e anunciará
o dia.
A parábola do claro dia
Dia
(ensaio)
«Quero ver ainda/nas flores
no amanhecer/
a face de um deus».
(Matsu Bashô)
Por sobre o pálio,
rompendo-o, rasgando-o,
a árvore,
que floresceu da ave,
é ela própria um sobrecéu que
acomoda o sagrado,
é ela própria também uma
emergência que sacraliza a vida.
A linha evolutiva da Luz
está agora completa
e a alquimia realizou-se,
criando um novo objeto.
Esta árvore é a metamorfose
de um longo caminho
que encontrou, no crepúsculo, o
declínio
necessário para a gestação, no
seio da noite,
e para o florescimento na
madrugada.
Esta árvore é a árvore
pujante e inicial de uma
descoberta
do Pintor
que terá encontrado numa
plenitude de Consciência
a forma exata de um novo objeto
de vida.
E do cúmulo,
da emergência de um arquétipo,
nasce a última árvore, que também
é a primeira;
acrescenta-se luz,
e o movimento é circular,
ciclíco;
porque se repete na abrangência
de um momento raríssimo
em que o objeto ascende ao
divino,
e o pálio deixa de ser
necessário,
porque o sobrecéu, que delimita
o espaço do sagrado,
é, agora, paradoxalmente, o
objeto da metamorfose:
- árvore, ave, homem, universo,
Vida.
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